No dia 3 de outubro de 1950, quando Getúlio Vargas tornou-se presidente do Brasil, era como se o país continuasse o mesmo de exatos vinte anos antes: a seleção brasileira de futebol seguia perdendo Copas do Mundo (como acontecia desde a primeira, em 1930);
Vargas ainda se impunha como um dos raros políticos carismáticos do país; os índices de analfabetismo permaneciam altíssimos e a saúde da população revelava os problemas de sempre. Mas essa era apenas uma impressão superficial. Sem ser no campo da bola – onde o Brasil de fato só acumulava derrotas (tendo sido tragicamente batido pelo Uruguai, em pleno Maracanã, no dia 16 de julho de 1950) – muita coisa havia se modificado desde que os milicianos gaúchos haviam amarrado seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco, em 31 de outubro de 1930.
Em primeiro lugar, o Vargas, que agora retomava o poder, estava de volta ao Palácio do Catete “nos braços do povo”, e não pela força das armas. O país ainda possuía milhões de analfabetos, mas eles tinham adquirido direitos básicos; embora ainda não pudessem votar.
A censura dos tempos do Estado Novo fora revogada; a concentração de renda diminuíra e o próprio Getúlio se mostrava disposto a revelar à nação sua face mais popular – e populista.
O mundo também se transformara por completo naqueles 20 anos. A era dos totalitarismos parecia encerrada, embora por detrás da Cortina de Ferro o terror e a repressão reinassem no mundo comunista. A Alemanha nazista fora aniquilada, graças, principalmente, ao exército soviético.
Tão logo a Segunda Guerra chegou ao fim, iniciou-se a Guerra Fria e ela estava cada vez mais quente.
Os Anos Dourados
O Boom farmacêutico
No início, a TV Tupi, como foi batizada, entrava no ar poucas horas por dia, sempre ao vivo e normalmente com problemas de operação. Apesar de os aparelhos transmissores custarem quase o preço de um automóvel, e de não haver um público significativo, Chateaubriand usou seu poder de persuasão para convencer grandes empresas a comprarem espaço publicitário no canal pioneiro. A medicina, a indústria farmacêutica e a propaganda, evidentemente, seguiam aquele novo ritmo e, também, se mostravam bem mais complexas, dinâmicas e “americanizadas”, não só no Brasil, mas em todo o mundo ocidental. Ainda assim, os laboratórios não estavam entre os primeiros anunciantes da TV; e não apenas porque a nova mídia ainda era por demais elitizada.
Acontece que, como já ocorrera na Primeira Guerra, a indústria químico-farmacêutica havia passado por muitos avanços ao longo da Segunda Guerra. Quando se iniciou a década de 50, um grande número de novos medicamentos chegou ao mercado. No entanto, não eram mais elixires, xaropes e depurativos que enchiam as prateleiras das farmácias e sim antibióticos, antidepressivos e ansiolíticos. E esses novos produtos não podiam ser anunciados para o público. Não só não podiam como, ao que tudo indica, os proprietários das patentes sequer queriam fazê-lo: a indústria farmacêutica parece ter chegado a conclusão que era mais barato, eficiente e rentável centrar seus esforços mercadológicos nos próprios médicos. Era o advento da chamada “propaganda ética”.
Na verdade, tal processo já se iniciara anos antes. E foi saudado como grande inovação, embora, de acordo com alguns pesquisadores, tenha servido também para aumentar as vantagens dos novos produtos sobre os medicamentos tradicionais. Não apenas isso, como também para acentuar o abismo que, cada vez mais, ia separando a indústria farmacêutica nacional da estrangeira. “É a partir daí que ocorre o processo de diferenciação que gradualmente levará a indústria nacional e a estrangeira a concepções e práticas promocionais diversas”, diz José Gomes Temporão no livro A Propaganda de Medicamentos e o Mito da Saúde. Não só “diversas como determinadas pelo nível de pesquisa e de produção (...) que, apontando para a síntese de drogas extremamente potentes, vai colocar no centro das preocupações mercadológicas o intermediador técnico das possibilidades de consumo: o médico”.
Vargas tinha sido derrubado em outubro de 1945, na esteira da vaga democrática que varrera o Ocidente e o marechal Dutra, que assumiu o poder, havia acelerado o processo de “americanização” do Brasil.
Em função disso tudo, o país que Getúlio encontrou ao tomar posse, em 31 de janeiro de 1951, era muito mais complexo e dinâmico do que aquele que ele próprio tinha ajudado a criar duas décadas antes. E nenhuma invenção simbolizava melhor tantas mudanças do que um novo veículo de comunicação: a televisão. Não por acaso, ela chegara ao Brasil quase junto com a eleição de Vargas, iniciando suas transmissões apenas quatro meses antes de ele assumir o governo.
Em 18 de setembro de 1950, não só a voz, mas também a imagem, da atriz Yara Lins foram ao ar com a mensagem: “Senhoras e senhores telespectadores, boa noite; a PRF 3 TV Emissora Associada de São Paulo orgulhosamente apresenta, neste momento, o primeiro programa de televisão da América Latina”. Havia apenas 200 aparelhos de TV em funcionamento no país; todos importados por Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, um paraibano intempestivo e centralizador que, como dono do conglomerado de jornais e rádios Diários Associados, prenunciava o advento dos grandes magnatas da mídia.
De acordo com Temporão e outros especialistas, “a entrada no país da indústria farmacêutica estrangeira se dá, a partir de então, de mãos dadas com os médicos, sob a égide e a bandeira do desenvolvimento científico”. Concretizam-se, assim, os anseios do doutor João Dollmann, representante da Merck no Brasil que, já em 1930, escrevia: “Além de remédios, os laboratórios modernos também produzem conhecimento, e como tais, os médicos os procuram em busca de orientação. A credibilidade da casa farmacêutica junto ao médico dependerá, portanto, de sua performance enquanto centro de assessoria científica (...) por isso,torna-se ao meu ver, hoje em dia, praticamente impossível a uma casa comercial vender produtos farmacêuticos sem que tenha a sua disposição um técnico, médico ou farmacêutico, pois só esse será capaz de avaliar as medidas de propaganda a serem executadas”1.
O tom é repetido, em 1947, pelo doutor Galvão Flores, quando diz:
“A propaganda por anúncios e reclames dos preparados estrangeiros é feita em regra, quase sem exceção, nos jornais médicos ou em avulsos folhetos pessoalmente endereçados aos médicos; as bulas são redigidas por técnicos em linguagem só acessível aos médicos (enquanto que) a grande maioria dos produtos nacionais prefere a seção de anúncios dos jornais leigos, os cartazes das vias públicas, o pregão do rádio. Eles assim prescindem dos médicos, saltam por cima dos médicos, para dirigir-se diretamente ao consumidor”2. No entanto, o que parecia ser um avanço “ético” iria se revelar uma estratégia bastante favorável à indústria, pois a melhor forma de “vender” um medicamento passou a ser “comprar” a opinião favorável de um médico que o recomendasse.
Mas, isso não significa dizer que os laboratórios estrangeiros tenham desistido de anunciar “diretamente ao consumidor”. Tanto é que o Sidney Ross se manteve como maior anunciante radiofônico do país, embora até 1952 concentrasse toda a sua veiculação na Rádio Nacional.
“Não permita que um fígado rebelde prejudique a sua saúde ou afete a sua boa disposição roubando-lhe o bom humor. Tome as pílulas Ross e diga: isso é que é vida. Com as pílulas de vida do Dr. Ross. Pequeninas, mas resolvem” dizia o locutor impostando a voz e encantando os ouvintes.
Para atingir seus objetivos, o laboratório dispunha de um departamento de propaganda maior do que qualquer agência do país, contando, em 1959, com 70 funcionários e filiais em diversos estados.
Os anúncios de medicamentos – tanto nacionais quanto estrangeiros – também se mantinham assíduos nas revistas que, tal e qual os bebês americanos, tiveram um boom nos anos 50. No início da década, foi inaugurada a editora Abril, que a princípio só publicava gibis da Disney, logo passando a investir no segmento feminino.
Em 1952, surgiu Manchete, de Adolpho Bloch, uma revista semanal repleta de fotos e reportagens especiais. Junto com a lendária O Cruzeiro, passou a ser o meio impresso preferido do segmento farmacêutico. Ao mesmo tempo, porém, a “propaganda ética” ia ganhando corpo e os médicos recebiam cada vez mais a visita dos propagandistas, que são os profissionais dos laboratórios farmacêuticos, responsáveis pela promoção de vendas dessas empresas.
Então, em agosto de 1954, Getúlio Vargas saiu “da vida para entrar na história” e Juscelino Kubitschek, à época governador de Minas Gerais, lançou sua candidatura à Presidência pelo Partido Social Democrata (PSD). Em outubro do ano seguinte, JK assumiu, prometendo fazer 50 anos em cinco, e o país passou a viver grande expansão industrial e de consumo, além de presenciar o advento da inflação e da corrupção em níveis até então nunca vistos. A maioria dos medicamentos ainda acenava com alívio, ânimo e calma, lançando mensagens do tipo que vida boa, toda família feliz ou desfrute ao máximo a alegria de viver. Eram tempos otimistas, inflamados por um certo furor publicitário e a indústria farmacêutica, com certeza, beneficiou-se muito deles.
Enquanto Brasília ia nascendo nos ermos do Planalto Central, realizou-se, em outubro de 1957, o primeiro Congresso Brasileiro de Publicidade, promovido pela Associação Brasileira das Agências de Publicidade (Abap). Nele, foi elaborado o Código de Ética Publicitária, que compilou as definições, normas e recomendações que os profissionais da propaganda deveriam seguir. Eis os três primeirositens do código:
“I – A propaganda é a técnica de criar opinião pública favorável a um determinado produto, serviço, instituição ou idéia, visando a orientar o comportamento humano das massas num determinado sentido.
II – O profissional da propaganda, cônscio do poder que a aplicação de sua técnica lhe põe nas mãos, compromete-se a não utilizá-la senão em campanhas que visem ao maior consumo dos bons produtos, à maior utilização dos bons serviços, ao progresso das boas instituições e à difusão de idéias sadias.
III – O profissional da propaganda, para atingir aqueles fins, jamais induzirá o povo ao erro; jamais lançará mão da inverdade; jamais disseminará a desonestidade e o vício.”
Seguindo ou não as novas regras, o fato é que a indústria farmacêutica continuou faturando alto e investindo muito em publicidade: em média, 30% do seu faturamento, de acordo com os dados divulgados por Unírio Machado no livro Vinte Anos da Indústria da Doença.
Ainda que boa parte dessa quantia fosse reservada para a “propaganda ética”, a TV ia se mostrando como um caminho óbvio, pois ao final da década já eram quase meio milhão de aparelhos nos lares brasileiros, com várias novas emissoras; e todas se preparando para receber o videoteipe. A possibilidade de gravar os comerciais iria mudar a vida dos publicitários e dar um novo rumo à propaganda.
O otimismo desenfreado do país – que, segundo o crítico Roberto Schwartz, se mostrava “irreconhecivelmente inteligente” – foi incrementado, também, pela bela vitória brasileira na Copa do Mundo de 1958, o “ano que não deveria acabar”. A conquista da taça Jules Rimet tornaria aqueles anos realmente “dourados”. Pena que eles acabaram logo.